27.2.08

Notas de uma Teerã Cult

As autoridades iranianas dizem que é antiiraniano. Marjane Satrapi diz que é pró-iraniano e não é possível não gostar do Irã vendo PERSEPÓLIS. É hilariante: Tem um “cover” de “Eye of the Tiger”. É terrível: Tem execuções, guerra. A protagonista é valente e covarde, deprimida e eufórica.

Há uma semana, dia 12 de Fevereiro, cerca de 70 pessoas encheram o pequeno centro cultural Ressaneh, em Teerã. Dois dias depois, mais 70 pessoas “apertaram-se” – o verbo é da Agência France Press - para caber lá dentro. E foi assim que uns 140 iranianos assistiram à projeção de um DVD.

Esse DVD continha o que muita gente chama uma autobiografia, mas a autora, Marjane Satrapi, prefere chamar autoficção. Nascida em 1969 no Irã, é tetraneta de um príncipe Qajar (mas, como ela própria diz, francamente, os reis Qajar tinham centenas de mulheres e milhares de filhos, que multiplicados pelos filhos que tiveram devem ter dado uns 15 mil príncipes, um deles pai da bisavó da mãe de Marjane).

Esta autoficção não recua tanto no tempo. Concentra-se entre 1978 e 1994, ou seja, é Marjane dos 10 aos 24 anos, desde as vésperas da revolução islâmica até à ida para França. E foi em França que a sua biografia se transformou em autoficção. Recém-chegada a Paris, Marjane contava tantas aventuras da infância no Irã aos amigos desenhistas de HQ que eles lhe disseram para fazer uma própria HQ, para ver se ela ficava um pouco quieta (claro que esta é a versão dela). Marjane fez mesmo e PERSEPÓLIS, em quatro volumes, tornou-se um sucesso mundial (recentemente a revista “Les Inrockuptibles” colocou-o em 5º lugar no seu suplemento de 100 melhores Hqs de todos os tempos).

Depois lhe propuseram que transformasse os livros num filme de animação, e, com Vincent Paronnaud a co-dirigir, Marjane mergulhou de cabeça. Chiara Mastroianni e Catherine Deneuve, que no filme fazem as vozes de Marjane e da sua mãe, vêem-na como Marjane, a Brava. Deneuve já tinha lido os livros, admirava Satrapi, e aceitou logo, quando a iraniana lhe telefonou para fazer a mãe da personagem. Ao saber disto, Chiara, que também lera os livros e ficara fã da auto-ironia de Satrapi, telefonou-lhe a pedir para fazer um teste de voz.

Além dos seus outros talentos, Chiara ficará assim imortalizada pela mais humana “cover” do “Eye of the Tiger” - “tam! tam-tam-tam!… Risin´up, back on the street…” -, um esplendor de desafinação que não existe no livro. A propósito, quem leu os livros, talvez note que Deneuve está um pouco austera demais, mas Chiara - Marjane adolescente e adulta - é maravilhosa.

As vozes foram gravadas antes dos desenhos serem feitos, para adequar os desenhos às vozes, o que obrigou a um trabalho intenso entre Satrapi e os atores. Deneuve diz que Satrapi sabia o que queria, e ainda assim lhe deixou toda a liberdade. Chiara diz que Satrapi não tem medo de nada, é a liberdade sem convenções. A outra mulher do filme é Danièlle Darrieux, em quem Satrapi pensou logo para avó, e pensou bem.

A formidável avó - que também é protagonista de outra HQ de Satrapi, “Broideries” - é uma das grandes personagens de PERSEPÓLIS e só por ela vale toda uma imagem do Irã além do clichê, desde as flores de jasmim no sutiã para cheirar gostoso, a desdramatização do divórcio porque o primeiro casamento é um ensaio para o segundo, e de resto os homens que a fizerem sofrer, explica ela à neta, são uns parvalhões.

Em Teerã, o filme passou em DVD e não em película porque é improvável que seja autorizado a estrear nas salas. Quem lá estava, acredita que aquela foi à única oportunidade “legal” de ver PERSEPÓLIS. Antiirariano demais, citou algumas autoridades.

Um dos espectadores de Teerã, citados pela AFP, um estudante, corrigiu: “Antiiraniano, não, antigovernamental”, e vários outros elogiaram o filme. Mas não se pode dizer que tenham visto tudo o que os demais espectadores verão, dado que a versão exibida foi “censurada” em algumas cenas de conteúdo sexual “. Um Teerã-cut, portanto.

As notícias não referem cortes de outro tipo, sendo que os conteúdos políticos - os milhares de presos e executados pela revolução islâmica, o milhão de mortos na guerra Irã-Iraque, o constante vigiar e punir dos costumes e da liberdade de expressão - são mais significativos em PERSEPÓLIS do que o “conteúdo sexual” - uns beijos, conversas de mulheres sobre dormir com homens e palavras como “pinto” e “seios”, aliás ditas pela avó (que dá uma receita para manter o peito rijo mergulhando-o em água com gelo, dez minutos, todos os dias).

O centro cultural onde o filme passou faz parte de uma rede criada por um antigo presidente da câmara considerado um moderado, que nos anos 90 ajudou a divulgar cultura alternativa e hoje está menos dinâmico. Os responsáveis do centro explicaram que quiseram projetar PERSEPÓLIS porque “quando um filme não é mostrado, as pessoas imaginam todo o tipo de coisas”. Esteve lá um crítico de cinema considerado conservador, Hussein Moazzezinia, que por um lado elogiou as qualidades técnicas e o roteiro, mas por outro, criticou a “visão parcial” de Satrapi, considerando que ela “foi seletiva ao omitir certos fatos, tornando seu filme pouco fiável e desonesto”. E concretizou: “Não podemos ignorar que milhões de pessoas aprovaram o ”imam” [Khomeini]. Não é verdadeiro dizer que a revolução foi feita refém por uma minoria”.

Em Cannes, foi ovacionado em pé e conta-se que Stephen Frears, presidente do júri, ficou em lágrimas. De certo, também riu. Aí, entre o humor e a angústia, livro e filme estão quites. Marjane Satrapi vive na França desde 1994, e a última vez que esteve no Irã foi em 2000. Em 2004, numa entrevista, tentou expressar em palavras as saudades que tinha do país natal: “Tudo, tudo. A começar pelas montanhas que rodeiam Teerã. Mas do que sinto mais falta é do sentido de humor iraniano. As piadas que mais me fazem rir são as iranianas. O apocalipse pode acontecer no Irã que no dia a seguir há piadas acerca desse apocalipse. E as pessoas… têm uma generosidade que nunca, nunca vi em parte alguma do mundo”.

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