"A cinefilia está em crise. Nós, críticos, estamos perdendo a credibilidade. A crítica deveria construir, com o cinema, um pensamento humanitário e filosófico, e não apenas dizer se um filme é bom ou ruim. Sou crítico. Caiu a ficha. Estamos perdendo [a comunicação com] a platéia. Hoje, a cinefilia não é mais como no meu passado"
Leon Cakoff
Leon Cakoff
Partamos do senso comum que supõe que existam dois públicos de cinema. De um lado, encontra-se o espectador que busca na sala escura um par de horas movidas a distração. De outro, membros de uma espécie muitas vezes olhada com estranheza e desconfiança, composta de cinéfilos e críticos, gente cuja paixão se explica pela razão de ver o cinema como uma continuidade da vida e do mundo, uma potência que os recarrega de novos, outros e múltiplos símbolos e significados.
Para aqueles que se contentam com a diversão, um livro como "A Rampa" (Cosac Naify, 248 págs., R$ 65) assim como parte da crítica publicada em jornais, revistas e sites de internet não trazem nenhum interesse. Já para o segundo público, cuja invisibilidade não é motivo para suspeitar de seu tamanho, a primeira edição no Brasil de escritos do crítico francês Serge Daney (1944-1992) é motivo de sobra para muita festa.
Pois, ao contrário do que se alardeia (ver declaração acima), não existe nem "crise da cinefilia" muito menos "perda da credibilidade da crítica". Só no Brasil, basta abrir as páginas de revistas como "Paisà" e "Teorema" e sites como "Contracampo", "Cinética" e "Cinequanon" para descobrir uma produção inquieta e estimulante de idéias, abastecida por uma geração de jovens cinéfilos e críticos que vêm, em anos recentes, restaurando o vigor de análise e o prazer de decifrar como participante a galáxia audiovisual em que estamos imersos.
"A Rampa" reúne uma seleção, feita pelo próprio Daney, de textos publicados nos "Cahiers du Cinema" entre 1970 e 1982. Ao longo dessa fase não é apenas o cinema que passa por incessantes mutações. Também a revista francesa, espécie de bíblia dos cinéfilos, teve de enfrentar sucessivas rupturas (teóricas, financeiras, gráficas) para preservar o poder de influência que conquistara desde sua fundação, nos anos 1950.
Em primeira instância, os escritos de "A Rampa" são testemunhos dessas duas histórias. Na subdivisão interna da obra, "Plano Geral" e "Pontos de Vista 1 e 2" resgatam do limbo uma produção que ficou condenada em conseqüência dos engajamentos políticos e teóricos da redação dos "Cahiers" nos anos pós-68.
Sua presença na edição, contudo, em vez de prova de anacronismo, ajuda a abastecer de respostas (e mais polêmicas) a questão-dilema que acompanha a reflexão sobre o cinema desde que ela surgiu: para que serve a crítica?
Outras tantas respostas o leitor encontrará nos capítulos seguintes de "A Rampa", ironicamente intitulados "Perdas de Vista 1 e 2". Neles, que reúnem textos de Daney a partir de 1975, observa-se um reenfoque, uma espécie de retorno à matéria que constitui o cinema: os próprios filmes.
Ao mesmo tempo, ganha amplitude (e clareza) o arriscado jogo textual que Daney perseguia como particularidade e assinatura desde a primeira fase.
O arcabouço teórico de predominância estruturalista (com Barthes e Lacan como estandartes) perde aos poucos a pretensão de pureza e se contamina da visão e, sobretudo, da experiência provocada pelos filmes. Desse modo, opera-se um curto-circuito intelectual, na medida em que a teoria cessa de conformar a interpretação do cinema, e este passa a informar a teoria, dando-lhe novo alcance.
Essa gradação se dá com tal intensidade que permite a Daney escapar dos limites da mera análise, produzindo um corpo teórico que se expande muito além dela, como no caso de suas vigorosas observações sobre a voz no cinema partindo de um comentário de O DIABO PROVAVELMENTE, de Bresson.
Muito mais que na primeira fase, assumidamente ideológica, é nesta segunda que Daney empreende uma releitura produtiva da "Política dos Autores", promovida pelo grupo de Truffaut, Godard, Rohmer, Chabrol, Rivette e companhia, primeira geração de críticos da revista.
Em sua lucidez, Daney condena de cara os artifícios do que ele chama de "retrô". Na medida em que o "autor" substituiu a "estrela" como objeto de culto, ele escreve, "não é mais o que se passa na tela que realmente conta, mas o que podemos aproveitar do querer-dizer do Autor".
Em vez de reproduzir o institucionalizado, Daney desloca o foco para o primeiro termo da fórmula, afirmando sistematicamente a "política" tanto no sentido dos não-ditos e das escolhas éticas e estéticas do artista quanto nas recargas de significados que o público tem a liberdade de conferir às obras.
Daí provêm, por exemplo, as geniais desmontagens de TUBARÃO, de Spielberg, e de HITLER, de Syberberg. São textos a anos-luz da concepção de crítica como guia de consumo e que comprovam a tese deleuziana de que o cinema, mais que dar temas para pensar, é, ele mesmo, um pensamento.
Por Cássio Starling Carlos (Folha)
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