O filme está chato? Basta colocar um trem chegando à estação, as rodas rangendo metalicamente, a fumaça poluindo o ambiente, as pessoas que aguardam, os passageiros que descem, os carregadores, os maquinistas... O burburinho. Os trens não servem só para transportar, mas também para animar a festa do cinema.
O cinema nasceu com um trem invadindo a sala de projeção. L'ARRIVÉE DU TRAIN (“Chegada de um Trem”) foi um dos filmes exibidos pelos irmãos Lumière por volta de 1895, ano1 da arte cinematográfica. Segundo consta, a platéia se assustou com aquela locomotiva que "ameaçava" sair da tela.
E foi um trem que marcou o primeiro faroeste e o primeiro blockbuster americano: THE GREAT TRAIN ROBBERY (“O Grande Assalto ao Trem”), que Edwin S. Porter rodou em 1903. Trata, naturalmente, de bandidos que assaltam um trem, são perseguidos e, por fim, presos por policiais... A cavalo.
O filme serviu de modelo para inúmeras produções: DO ASSALTO AO TREM PAGADOR (1962) a O PRIMEIRO ASSALTO AO TREM (1979). Quase sempre, como uma espécie de coadjuvante: Em PACTO SINISTRO (1951), dois homens trocam favores criminosos num vagão de passageiros; Em MATAR OU MORRER (1952), um bandido deve chegar no trem do meio-dia; Em SANGUE SOBRE A ÍNDIA (1959), um oficial inglês protege o filho de marajá numa viagem e em QUINTETO DA MORTE (1955), bandidos resolvem diferenças numa passagem de nível.
Daí para frente, o trem não saiu de cartaz... Há sempre um trem para servir às tramas mais vorazes ou absurdas. São tantos filmes que seguem esse roteiro quanto as estrelas da antiga Metro. Em QUANTO MAIS QUENTE MELHOR (1959), músicos travestidos se juntam a uma banda feminina numa excursão de trem; Em QUINTETO IRREVERENTE (1982), amigos se despedem, com tapas no rosto, dos passageiros de um trem.
Mas os trens também foram "protagonistas". A GENERAL (1927), de Buster Keaton e Clyde Bruckman, é um exemplo clássico. Keaton é o maquinista do Sul que conduz a locomotiva “The General” na guerra civil norte-americana, cruzando linhas inimigas. A "estrela" do filme era uma locomotiva já usada em NOSSA HOSPITALIDADE (1923), de Keaton e Jack Dlystone.
O TREM (1964), conta uma história da resistência francesa. Burt Lancaster é o chefe de estação que luta contra nazistas que pretendem levar um trem repleto de obras de arte. Já nO EXPRESSO DE VON RYAN (1965) é Frank Sinatra quem luta, para libertar 600 prisioneiros, contra os nazistas.
Na série "Expresso", aliás, há muito mais. Marlene Dietrich enfrenta o amor e a revolução em O EXPRESSO DE SHANGAI (1932). Joseph Cotten é capturado por bandidos em O EXPRESSO DE PEQUIM (1951) e Gene Wilder vive paixões e confusões em EXPRESSO DE CHICAGO (1976).
Tem mais: ALIANÇA DE AÇO (1938), de Cecil B. De Mille, conta a história da construção da estrada de ferro que liga os Estados Unidos de costa a costa. TRENS ESTREITAMENTE VIGIADOS (1966) mostra a Segunda Guerra a partir da perspectiva de uma estação. QUANDO A MULHER ERRA (1953) narra uma história de adultério no cenário da Stazione Termini, de Roma.
Às vezes, o protagonista é o profissional ferroviário. Em LA ROUE (“A Roda”), que Abel Gance rodou em 1921, Séverin Mars é o maquinista que adota uma órfã, apaixonando-se. Em O FERROVIÁRIO (1956), Pietro Germi interpreta um maquinista com problemas em casa e em O HOMEM DA LINHA (1986), Jim Van Der Woude é um ferroviário solitário.
Se falta emoção, o trem pode ser a solução. É assim em ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE (1974), de Sidney Lumet, uma história de Agatha Christie sobre trilhos; Em A TRAVESSIA DE CASSANDRA (1976), há terroristas e vírus a bordo e em EXPRESSO PARA O INFERNO (1985), fugitivos tentam escapar de um trem sem freios.
Os trens também podem rir. Isto é, propiciar boas gargalhadas. VIUVINHA INDOMÁVEL (1959) mostra uma mulher em luta com o dono de uma ferrovia. BUTCH CASSIDY (1969) conta com humor as peripécias de uma dupla (Robert Redford e Paul Newman) que vive de assaltar trens e bancos. E JOGUE A MAMÃE DO TREM (1987) é uma paródia alucinada de PACTO SINISTRO.
Mais longe das gargalhadas, nos filmes de David Lean há sempre um trem na paisagem. Em DESENCANTO (1945), o mais elogiado de seus filmes intimistas, uma estação ferroviária é o cenário para uma história de amor. E nas superproduções A PONTE DO RIO KWAI (1957), LAWRENCE DA ARÁBIA (1962) E DOUTOR JIVAGO (1965), por exemplo, os trens fazem parte da trama.
Em outras paragens, o trem tem serventia mais poética. Em Federico Fellini, ele é o veículo que conduz a outras realidades. É assim em OS BOAS-VIDAS (1953), no qual a estação ferroviária é a única saída para os rapazes de província e em A CIDADE DAS MULHERES (1980), no qual a travessia de um túnel é uma passagem para o sonho.
Ação, e muita, também é uma presença significativa em várias produções. Um trem descarrila em O MAIOR ESPETÁCULO DA TERRA (1952), de De Mille; outro atravessa uma parede em JOE KIDD (1972). Um outro leva refugiados em O ÚLTIMO TREM (1973), e um terceiro conduz traficantes de armas em UM TREM DO INFERNO (1976).
Harry Potter andou de trem. E Owen Wilson, Adrien Brody e Jason Schwartzman empreenderam uma VIAGEM A DARJEELING (2007). E até o trem mais famoso do mundo têm um filme TRANSSIBERIAN (2008) deve estreiar logo nos cinemas.
Um trem vai, um trem vem... E o cinema continua fiel a L'ARRIVÉE.
Por Federico Mengozzi (Folha de São Paulo)